Pequena África: Onde o Candomblé Nasceu no Rio de Janeiro
setembro 27, 2024 | by Carlos Duarte Junior

A Pequena África no Candomblé é um dos marcos fundamentais da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro. Localizada na região portuária da cidade — entre os bairros da Gamboa, Saúde e Santo Cristo —, essa área urbana concentra memórias profundas da escravidão, da resistência negra e dos primeiros espaços religiosos dedicados ao culto dos orixás em solo carioca.
Thank you for reading this post, don't forget to subscribe!Foi nesse território, entre o século XIX e o início do século XX, que surgiram os primeiros terreiros urbanos do Rio de Janeiro, vinculados ao Candomblé e à herança ancestral africana. A região não apenas acolheu os recém-libertos após a abolição, como também se tornou o centro cultural, político e espiritual da comunidade negra na capital imperial.
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O que foi a Pequena África?
A chamada Pequena África foi uma expressão cunhada por intelectuais e artistas, como Heitor dos Prazeres e o historiador André Diniz, para se referir à zona portuária do Rio onde se concentrou uma intensa presença negra após o fim do tráfico de escravizados. A área, próxima ao Cais do Valongo — ponto de entrada de quase um milhão de africanos escravizados —, tornou-se um local de resistência, reconstrução identitária e preservação de práticas culturais e religiosas africanas.
Ali, surgiram rodas de samba, espaços de capoeira, mercados de ervas, associações beneficentes, e, sobretudo, os primeiros terreiros urbanos de Candomblé, que preservaram a herança espiritual iorubá, jeje, angola e fon.
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Primeiros terreiros na Pequena África
A região da Pequena África foi abrigo para muitos terreiros pioneiros, frequentemente invisibilizados pela historiografia oficial. Diferente das casas baianas, que se formaram em áreas mais afastadas, os primeiros espaços de culto no Rio nasceram dentro das casas de ex-escravizados e mulheres negras livres, em sua maioria quituteiras, parteiras ou lavadeiras.
Muitas dessas mulheres fundadoras eram chamadas de “tias” — como Tia Ciata, Tia Bibiana e Tia Veridiana —, figuras centrais para o sincretismo religioso e para a formação do Candomblé carioca. Embora associadas publicamente à religiosidade católica ou ao espiritismo popular, essas mulheres mantinham cultos de orixás, caboclos e entidades em seus quintais, com forte influência do Candomblé de nação, especialmente o Ketu.
Tia Ciata: símbolo da espiritualidade e cultura
Uma das figuras mais emblemáticas da Pequena África foi Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida), baiana de Santo Amaro, que chegou ao Rio de Janeiro ainda jovem e se estabeleceu na Praça Onze. Famosa por sua atuação como quituteira e por organizar festas religiosas e populares, Tia Ciata tornou-se um elo entre o sagrado e o profano.
Enquanto sua fachada era associada às festas do Divino Espírito Santo, dentro de sua casa os cultos aos orixás ocorriam com rigidez litúrgica. A casa de Tia Ciata, embora não se definisse publicamente como terreiro, funcionava como tal e foi um dos primeiros centros espirituais estruturados da cidade — ponto de encontro de músicos, políticos e praticantes da religião afro-brasileira.
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A repressão e o disfarce religioso
O Rio de Janeiro, mesmo após a abolição, permaneceu como um espaço hostil à manifestação religiosa negra. As práticas do Candomblé, quando descobertas, eram tratadas como crime de curandeirismo ou feitiçaria, e seus praticantes perseguidos pela polícia, especialmente durante a Primeira República.
Por isso, muitos terreiros da Pequena África se organizavam com sincretismo estratégico: orixás eram associados a santos católicos, e os toques de atabaque aconteciam sob disfarce de festas populares. Essa estratégia de resistência permitiu que a espiritualidade africana sobrevivesse e se espalhasse pelas favelas e bairros periféricos que se formaram no entorno da região portuária.
O legado da Pequena África no Candomblé
A contribuição da Pequena África para o Candomblé no Rio é incalculável. Mesmo com as transformações urbanas e o apagamento histórico promovido por políticas públicas, o território segue reverberando axé. Muitos dos primeiros terreiros influenciaram a formação de casas de santo nos subúrbios cariocas, como Madureira, Oswaldo Cruz e Irajá, onde o Candomblé se expandiu nas décadas seguintes.
Além disso, a Pequena África deu origem a uma tradição carioca do Candomblé, fortemente marcada pelo sincretismo, pela presença de entidades híbridas como os caboclos e pelo diálogo entre o culto aos orixás e outras práticas de matriz africana.
Hoje: Patrimônio Histórico e Resistência
Atualmente, locais como o Cais do Valongo, a Pedra do Sal e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos são reconhecidos como patrimônio cultural e espiritual da memória afro-brasileira.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu o Cais do Valongo como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. Além disso, o samba, que nasceu nesse ambiente de cruzamento cultural e religioso, foi reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro — parte indissociável da herança dos terreiros da Pequena África.
Saiba mais sobre o Valongo no IPHAN
Conclusão: Onde tudo começou
Falar da Pequena África no Candomblé é reconhecer um espaço de origem, de resistência e de criação. Ali nasceu não apenas a estrutura do Candomblé urbano no Rio, mas também uma herança espiritual viva que permanece nos terreiros, nas músicas, nos corpos e nas memórias do povo de axé.
É no chão da Pequena África que a história do Brasil se entrelaça com a força ancestral dos orixás, revelando que o sagrado também tem geografia — e que ela pulsa no coração da cidade.
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🌐 Referência externa confiável: IPHAN – Cais do Valongo
- Com índice: Sim | Capa do livro: Mole | Gênero: Direito, política e ciências sociais. | Conto. | Número de páginas: 248….
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